Uma das formas para se poder abrir uma possibilidade para a reflexão sobre o infinito é começar pela indagação sobre o ponto de partida onde a sua existência é conjurada, a saber, o da constituição do seu advento em função do saimento de um olhar do nada, da emergência de um espectador da ausência de si mesmo. É com o acontecimento da irrupção do
Sapiens, que um olhar se confronta com a possibilidade do infinito no seu horizonte. Mais, a constituição urdida do olhar e do infinito, um em função do outro, é de tal ordem que o olhar faz a sua aparição na condição de arremessado em direcção a esse abismo insondável por o que daí retorna como um chamamento irresistível. Não é por acaso que os astrónomos ficam capturados pela procura incansável de ver um mais além do visível no espaço celeste, que os marinheiros d’outros tempos se sentissem fascinados pela linha do horizonte no mar onde, supostamente, o mundo conheceria o abismo in-visível contíguo ao seu limite, que os budistas procurem ultrapassar o mundo das imagens e do pensamento para atingirem um mais além, o Vazio, que os povos sempre fossem atraídos em relação ao Absoluto, ao Todo territorial, ou, como o caso mais evidente, das muitas e diferentes formas de crença num mais-além divino todo-poderoso. Como tentar perceber a essência desse chamamento?
Uma primeira indicação poderá ser percrutada em Pascal, o que eu chamaria de vocação do homem para o infinito: “
o homem (…) só é produzido para a infinitude”
[1]. No entanto, sobre que matéria se constitui o infinito, ou melhor, o homem como vocação para o infinito? De onde e como se abre a possibilidade de vislumbrar esses horizontes infindáveis?
Teremos de começar por ponderar o limite habitado por um ser de perspectiva que, com a sua forma de existência, comporte em si a notícia de um mais além insondável. Não parece ser possível o advento do infinito a partir de um não-lugar, de um momento zero de si. O infinito, nesta ordem de ideias, surgiria como a consequência de um finito, de um olhar movediço, ou seja, de um ponto de vista marcado por um movimento interrogador e re-contemplador que, paradoxalmente, é lançado, pela essência desse mesmo carácter, no confronto com abismos contíguos aos seus limites, com in-visíveis que a cada momento re-escrevem a sua finitude – toda a história humana acaba por ser a história da re-escrita da finitude -, com uma distância indefinida que retorna para além do manto da visibilidade em que está constituído: com o seu íntimo (e desconhecido) Desconhecido.
É agora a própria noção de uma finitude que se configura problemática. Como determinar a fronteira para além do qual se acederia a um olhar sobre o infinito: tal como alguém que tivesse percorrido o caminho até ao último cume do conhecido para testemunhar a fronteira da finitude e a contemplação de um abismo sem fim? Ou será, pelo contrário, que ao habitarmos no centro de uma esfera de visibilidade, estamos condenados a cada vez que nos deslocarmos, deslocarmos igualmente, num sempre já, o centro dessa mesma esfera e os seus limites no modo do que Samuel Beckett designou de uma
estúpida obsessão de profundidade: “
Haverá mais panos de fundo, panos de fundo mais fundos? A que panos de fundo dá acesso este pano de fundo?”
[2]Dado que a constatação que fazemos em relação ao carácter problemático e indefinido do cubículo finíto onde o homem habita, do espectador que se vê na assistência daquilo que o rodeia, o que daí decorre é que a indefinição da finitude afecta, de dentro de si, o próprio esclarecimento do infinito.
O que podemos afirmar para já, tendo em conta as considerações feitas, é que a essência do infinito é a de um permanentemente adiado, corresponde, quanto muito, ao avesso de um suposto último pano de fundo em função do qual se acederia aos seus domínios. O que talvez nos permita dar o passo de ponderar a existência de um compromisso, de uma relação de intimidade e de entretecimento entre o finito e o infinito. Neste sentido, é possível pressupormos que o infinito surgiria aqui como o que Lacan designa de
extimo, ou seja, numa relação de
exterioridade íntima com o finito, a sutura do infinito no finito como o seu centro mais íntimo. Não é o finito que é a casa do ser, ou seja, meramente a irrupção de um lugar no qual o homem se constitui como um espectador neutro face àquilo que vê, mas é na medida em que esse olhar se caracteriza por ser lançado em «direcção a», na ultrapassagem do seu horizonte e com uma intencionalidade que escapa aos domínio do cogito, a habitação conhecida, que se poderá considerar a ideia de uma relação de composição entre o finito e o infinito. Corresponderiam, uma e outra, ao seu avesso e direito, ou seja, às linhas que compõem o que Pascal designa como a “
doença natural”
[3] do homem, a saber, a desproporção estrutural de que ele é prisioneiro. Como nos diz Pascal, o “
que é o homem na natureza? Um nada à vista do infinito, um todo à vista do nada, um meio entre nada e tudo. Infinitamente afastado de compreender os extremos, o fim das coisas e o seu princípio são para ele invencivelmente ocultos num segredo impenetrável, igualmente incapaz de ver o nada donde é tirado, e o Infinito em que se emerge”
[4].
Entramos numa problemática de identidade, desse
meio entre nada e tudo, e, mais concretamente, da identidade do ser do homem, da identidade do que anteriormente surgia como da ordem do finito, do dentro, da unidade, por oposição ao infinito, ao fora, aos mistérios do indeterminável, dois todos considerados separadamente, mas que agora surgem transfigurados como duas metades entretecidas uma na outra: “
há um fora e um dentro e eu no meio, talvez eu seja a coisa que divide o mundo em dois, de um lado o fora, do outro o dentro, pode ser tão fino como uma lâmina, não estou num lado nem no outro, estou no meio, sou a divisória, tenho duas faces e não tenho espessura”.
[5] A problemática da identidade, que consideramos aqui a partir do entretecimento do infinito e do finito, do dentro e do fora, ou seja, a problemática da determinação de uma identidade e de uma pertença como claramente estabelecidos e apreendidos – como aparece ilustrado hoje no equívoco do espírito geométrico da psiquiatria, da neurologia e da psicologia, com as pretensões de redução exclusiva da vida psíquica ao determinismo biológico, genético e das categorias psicopatologicas -, configura-se como algo da ordem de uma miragem e de uma ilusão, na medida em que se está sempre e já afectado irrevogavelmente pelo desconhecido e pelo indeterminável, como está bem patente, por exemplo, no fenómeno do
olhar.
Detenhamo-nos um pouco sobre este tema. O fenómeno do olhar é um cúmplice constitutivo da identificação primeira do ser humano ao resultado de um lance de dados divino, o da dádiva de um corpo, a identificação do nosso eu presidida pelo testemunho do rosto. É esta a ilusão de uma habitação primordial, a de que um rosto é a encarnação transparente do seu eu. Mas poderia alguém dizer-me: “
Conheces-me pelo meu rosto, conheces-me enquanto rosto, e nunca me conheces-te de outra maneira. Por isso não te passou ainda pela cabeça que o meu rosto possa não ser eu.”
[6] Da mesma forma que quando nos olhamos ao espelho, pelo que é que ficamos captados? Para onde olhamos quando nos vemos ao espelho? Não para os olhos ou para a totalidade do rosto, mas para o olhar donde somos olhados, para esse olhar donde recebemos a notícia, nos instantes inefáveis de nós mesmos, de um abismo, de uma outridade para além da identidade que reconhecemos em nós e que se poderia formular da seguinte forma:
quem sou [eu] naquilo que sou?É esse carácter de estar lançado num para além, como vocação para o infinito, que é parte constitutiva da nossa essência, enquanto um movimento existencial movediço de determinar o indeterminável, da notícia invasiva mas não reconhecida de uma
desproporção estrutural (não é essa uma das denuncias de Pascal, ao enunciar a desproporção no homem?). O infinito é da ordem de um movimento de procura, de localização de si impossível numa “
esfera infinita que em toda a parte tem o centro e em parte alguma a circunferência”
[7]; é o retorno da notícia do indeterminável na língua indizível da angústia sempre que o homem pensou constituir uma certeza sobre si - como se eu me pertencesse a mim nos meus actos irreflectidos, nos meus sonhos, nas minhas paixões: a reterritorialização impossível de uma errância no tempo: “
Conheçamos pois o nosso alcance – diz-nos Pascal – nós somos alguma coisa, e não somos tudo; o que temos de ser rouba-nos o conhecimento dos primeiros princípios, que nascem do nada; e o pouco que temos de ser esconde-nos a vista do infinito”
[8].
Se a desproporção estrutural do homem é algo que pode ser realçado através do questionamento do conceito de infinito, como explicar a constituição do homem numa essência desproporcional que tende a esconder a vista do infinito em relação a ele mesmo e ao que o rodeia? Qual a causa, a génese dessa
desproporção? Parece-me que Pascal andou nas imediações da resposta sem, contudo, a ter conseguido explicitar. Vejamos então de que ordem são essas imediações. É de uma intuição surpreendente a definição de Pascal do que seria o método perfeito de conduzir o raciocínio nas diversas matérias: “
tudo definir e tudo provar”
[9]. Mas como Pascal diz, este método é impossível. Existem
termos primitivos que se caracterizam por uma indefinibilidade, tal como o espaço, o tempo, o movimento, etc., cuja tentativa de definição acarretaria mais um obscurecer dos mesmos do que a sua clarificação. Esta constatação de Pascal permite fazer sobressair o problema com que ele se confrontou, embateu, encalhou, o da própria essência da linguagem, como nós poderemos também observar mais pormenorizadamente no
Crátilo de Platão. O que se constata tanto em Platão como em Pascal, é que as palavras são da ordem de um rasto, de uma pegada, reenviam e remetem sempre para outras, sem que exista a Palavra que diga o que ela é, que faça surgir a coisa representada em total transparência de si mesma. O homem está condenado a dizer-se nas palavras sem que exista a palavra que diga a verdade do que ele é.
Podemos afirmar que Pascal depara nas suas reflexões não só com o sujeito do
Verbo, mas com o próprio
muro da linguagem. Ora, é na própria essência da linguagem que podemos encontrar a causa e a condição da desproporcionalidade do homem. A incompletude estrutural do ser humano, o corte do ser andrógino de Aristófanes, corresponde ao atravessamento da linguagem no corpo da carne. Reside na linguagem a génese de uma singular
descontinuidade, que se traduz como a perda no homem da unidade consigo próprio e o encontro irremediavelmente des-encontrado com o Real. É sobre esta incompletude, des-encontro, que reside a condição do advento do homem como vocação para o infinito.
É ao caminhar nos trilhos da linguagem que o homem está condenado ao exercício interminável de equilibrismo sobre as palavras, a acender-se a si mesmo na irrupção de um olhar que desconhece a matéria que o constitui, que o lança “
entre esses dois abismos do Infinito e do Nada”
[10]. Este é também o campo da angústia como a notificação de um para além do véu e o da necessidade irremediável de uma orientação de um norte existêncial frágil e tímido no crespúsculo nevoento que compõe na visibilidade.
Uma importante consequência de se estar constituído na e pela linguagem é que, na medida em que as palavras são da ordem do rasto, o que surge como problemático é o acesso a uma Resposta inoculante para sua
doença natural, à garantia de um ponto cardeal que nos oriente no nosso itinerário existencial e que nos resguarde do “
eterno silêncio desses espaços infinitos”
[11] com que somos confrontados.
Poderíamos pensar que uma das formas sintomáticas com que se lida com esse
eterno silêncio dos espaços infinitos, consentâneo com o in-visível que se instala no avesso de um hipotético último pano de fundo, com o desconhecido que se entranha em nós sob a forma de uma máscara incógnita, seria a
tentação do Absoluto, da Completude:
o tudo definir e tudo provar que Pascal antevê como o método perfeito mas impossível; as metades divididas de Aristófanes imersas na procura de se fundirem numa só;
o método para acabar com as discussões em Leibniz, o encontro
pos-mortem com Deus na religião (
religio viria de
religare, de acordo com Lactâncio); o Saber Absoluto em Hegel, a pretensão de exclusividade totalitarista do saber científico, etc.
Neste sentido, o Absoluto surge como a própria transgressão absoluta, como transgressão do infinito, a saber, a absolutidão de uma Resposta, a certeza de um projecto de existência, a definição da indefinição, o cobro do desamparo existencial. É Pascal quem nos diz que “
ardemos de desejo de encontrar uma base firme, e uma última base para aí edificarmos uma torre que se eleve ao infinito; mas todo o nosso fundamento estala, e a terra abre-se até aos abismos”
[12]. O pavor do eterno silêncio desses espaços infinitos de que ele fala corresponde ao pavor da confirmação dos ecos desse desamparo de que estamos reféns, de que não é possível a elevação ao infinito como a absolutização de nós, da temível recordação de que estamos condenados a percorrer o itinerário da infinitude num breve momento finito, da angústia em suportar a inexistência da Revelação, de um Segredo divino e da Resposta derradeira como o que no palimpsesto da vida tecida pela palavra se trataria de encontrar: a sua própria justificação.
[1] Pascal, B.,
Do Espírito Geométrico e da Arte de Persuadir, Porto Editora, Porto, 2003, pg. 81.
[2] Beckett, S.,
O inominável, Assírio & Alvim, Lisboa, 2002, pg. 10.
[3] Pascal, B.,
Do Espírito Geométrico e da Arte de Persuadir, op. cit., pg. 29.
[4] Ibidem, pg. 89.
[5] Beckett, S.,
O inominável, pg. 142.
[6] Kundera, M.,
A imortalidade, Publicações Dom Quixote, Lisboa, 1999, pg. 37.
[7] Pascal, B.,
Do Espírito Geométrico e da Arte de Persuadir, op. cit., pg. 88.
[8] Ibidem, pg. 92.
[9] Ibidem, pg. 18.
[10] Ibidem, pg. 89. Pascal refere-se ao infinitamente grande e ao infinitamente pequeno.
[11] Ibidem, pg. 98.
[12] Ibidem, pg . 93.
Bibliografia
Beckett, S.,
O inominável, Assírio & Alvim, Lisboa, 2002.
Pascal, B.,
Do Espírito Geométrico e da Arte de Persuadir, Porto Editora, Porto, 2003.
Kundera, M.,
A imortalidade, Publicações Dom Quixote, Lisboa, 1999.