Wednesday, February 09, 2011

Joseph Wright of Derby , 1768, Experiência com um Pássaro numa Bomba de Ar

(convido-vos a clicar para ver a imagem aumentada e a permanecerem por alguns momentos na contemplação deste belíssimo quadro)




Esta obra prima de Wright of Derby coloca-nos diante da primazia do olhar. Do modo como aquele que vê está alienado na solidão do seu olhar.


Ilustra-nos de modo soberbo como o olhar não é, de modo algum, um acontecimento meramente espacial. Materializa-se, antes, como um acontecimento biografico-disposicional (o termo alemão Sitmmung, disposição, é utilizado tendo em vista as disposições do espírito, isto é, de se estar bem ou mal disposto), a saber, é perpassado por tensões afectivas, pulsões de vida e de morte mais ou menos intensas que foram, vão sendo e serão inscritas na historicidade do transeunte da temporalidade que é cada um nós. O olhar faz-nos. Na relação do tempo que atravessamos com o olhar tornamo-nos naquele que somos, bulímicos ou anoréticos do Desejo. Não existe aqui meio termo para o olhar desejante, bem como não existe o olhar sem o desejo, consequência da inscrição de um Eu numa história (que Freud afirmaria como edipiana), num devir.


O olhar, desse modo, jamais é um olhar que olha para as coisas como elas são, mas está ininterruptamente assaltado por tensões de não-indiferença, por uma eletrificação pulsional que o coloca perante um mundo em função de paixões e ódios, atracções e evitamentos, perseguições e fugas, dos rostos que nos são amigáveis, que amamos, que odiamos ou que nos são neutros, dos locais que nos causam repugnância ou desgaste, conforto ou descanso ou daqueles que nos evocam memórias tristes, alegres, nostalgia, das situações que nos provocam angústia ou concupiscência. Tal como as paredes das nossas casas (ou ainda mais as dos nossos pais) não são meramente feitas de tijolo e cimento, mas têm incrustadas a nossa história. São íntimas e familiares ao nosso olhar. Segredam-nos quem somos.


É em Nietzsche, por exemplo, que poderemos encontrar um dos excelsos representantes do derribamento da ilusão de um acesso panoramático ao real, como se este fosse o mesmo para todos, e da afirmação de que o olhar nada mais pode ansiar do que ser uma visão do mundo. Foi Nietzsche quem estilhaçou o mundo em fragmentos e deu a cada um o pedaço proveniente da refracção única e intransmissível que do olho se constitui num olhar para afirmar: "isto é teu, foi assim que gastaste o tempo do teu olhar".


Ponto assente: não existe o perspectivismo sem a dor, a dor da solidão. O olhar não é meramente um modo de acesso ao mundo. Esse é o engano. Concede, tão somente, o acesso àquele que vê da sua própria posição no mundo. Não é disso que se trata na fábula da Branca de Neve, quando a sua madrasta diante do olhar que lhe é devolvido pelo espelho enuncia: "espelho meu, espelho meu, existe alguém mais bonita do que eu?"


Poderemos constatar isso mesmo no Estádio do Espelho de Lacan. O que a mãe diz de modo silencioso ao seu bebé no acto de o levar ao espelho é algo como: "é de um tu que se trata, é contigo que te terás de haver. Logo que te conseguires ver ao espelho deixará de existir um Nós primordial. Terás de lidar toda a tua vida com essa perda pois é ela que te abre o trilho a que chamarás destino". Este destino que é aberto com o olhar é o trilho do desejo. Nesse sentido, o destino do olhar será o de estar ao serviço, sem que se tenha sobre isso uma grande lucidez, de uma procura de algo que se quer reaver, recuperar: o sonho informulável do reencontro impossível com a Totalidade do mundo.


Está em causa a compreensão de que é através do olhar que o sujeito sofre um efeito de reviramento do seu íntimo, do De Dentro, no exterior, enquanto que trespassado pelo desejo desse De Fora. O De Dentro do sujeito é cerzido pelo olhar com o De Fora, de tal forma que o si mesmo de cada um nós não está no nosso interior, uma vez que o De Dentro está suturado com o De Fora, mas antes no exterior. É o centro do nosso ser que está deslocado, ausente do interior do nosso corpo através do olhar: exilado de si sem que o saiba, é a si mesmo que o sujeito procura no exterior ao recobri-lo com as ficções do seu desejo.


O olhar de um indivíduo é também, por esse motivo, um abismo intransponível para um outro. Quanto muito é signo de algo para alguém, de uma alegria, um sofrimento, indiferença, tédio, paixão, tristeza. É também dessa intransponibilidade que o quadro nos fala, por exemplo, na figura masculina que envolve com o braço uma das raparigas procurando acalmá-la. Contudo, ele nada sabe do que se passa com ela: não existe sintonização possível com o sentimento que a inunda. Estamos sempre a sós com o nosso sofrimento, mesmo quando o Outro nos conforta.



O amor, no que se refere ao olhar, seria uma forma de tentar transpor-se essa distância inconhecível. Na melhor das hipóteses, leva-nos sempre até metade do percurso de uma travessia que se actualiza, a cada vez, na sua infinitude. O outro é, mesmo quando amado, sempre e já um desconhecido.


Mas disto as duas figuras enamoradas que surgem do lado esquerdo do quadro nada querem saber, tal que estão tomadas pelo turbilhão vertiginoso de fazer Um com o Outro chamado paixão. Nada querem saber de um resto que resiste em mim e nesse Outro ao movimento de totalização e de fusão do amor, de um resto recalcitrante secreto e inefável, a chave perdida do nosso ser, metades irrevogavelmente descontínuas que somos, como afirmava Aristófanes no Banquete de Platão. O amor é, por isso, um dos sentimentos mais ilustrativos do descentramento do sujeito, do modo como está exilado do seu si mesmo, como Pessoa tão bem nos recorda: "Nunca, senão pensando no amor, me sinto tão longínquo e deslocado".




Um dos olhares mais intrigantes e mais enigmáticos é sem dúvida o do cientista na parte central do quadro:




Recordemo-nos de que estamos no palco do Iluminismo. As promessas da ciência fervilham e irrompe a febre do progresso.


Wright of Derby descreve no seu quadro uma experiência científica que nos coloca perante o espectáculo da asfixia de um pássaro. Vemos uma cacatua que morre nas mãos de um cientista à medida que este demonstra a formação do vácuo ao extrair o ar do interior do globo de vidro onde ela jaz.

É uma imagem que procura sugerir-nos uma divisão subjectiva, colocar-nos num entre dois, entre a ciência como algo cujas descobertas e invenções podem ser desencadeadoras de fenómenos de perplexidade, mas que, inversamente, também podem resultar em horror.

O que me parece digno de se sublinhar no olhar daquele que realiza a experiência, de uma experiência que, mais do que científica, envolve um gozo silencioso, uma certa vontade de algolagnia, é não só o seu modo de éxtasis em relação à própria cena figurada no quadro, de um saimento do olhar para fora do quadro, para o espaço da temporalidade, isto é, um lugar vazio que por excelência pode ser ocupado por qualquer um daqueles que, como Hanna Arendt diz, vive uma morte vivente (mors vitalis) ou uma vida morredoura (vita mortalis), como também o modo como nos desafia pelo seu estado incólume ao acto que pratica.

O olhar que Wright of Derby nos revela no cientista é ele, verdadeiramente, o olhar do espectador, daquele que nos espera, a nós, os muitos que por ele passam, numa posição de domínio, de subjugação, tal como se fosse um demiurgo invulnerável à tragédia humana e aos seus apelos de amparo. Mais, é um olhar que se sustenta num acto que nos procura inflingir um suspense (morrerá ou não a cacatua?) de modo concomitantemente à forma inquitantemente estranha [Unheimlichkeit], para recorrer aos termos de Freud, como nos olha do altar da sua inafectibilidade.

Temos também o olhar do rapaz que está do lado direito do quadro, um olhar que está deposto no local da experiência. Não se sabe bem o que ele procura fazer. Procurará recolocar a gaiola no local dela, certo de que a cacatua não sobriverá à experiência, ou procurará antes descer a gaiola para voltar a introduzir a cacatua no seu interior logo que a experiência termine? Ou será ainda que procura esconder a lua cheia com as cortinas, um símbolo que representava (representará ainda?) o enigmático, o inapreensível, a metáfora de um mistério último inacessível e incapturável, como que para nos sugerir que com ciência não só se convoca a tentação de tudo se dizer sobre o homem, como igualmente que com essa ilusão de uma desvelação total da sua essência (tentações estas que podemos hoje em dia ouvir, por exemplo, no domínio genética, do psicologico-comportamental ou da neuro-psiquiatria) surge o perigo impensado de uma herança árida e deserta, verdadeiramente intransitável para que se possa fazer o caminho de uma procura de si, de um perguntar por quem se é n'isso que se é (seja no olhar ou no amor).

Por último, o olhar da figura que é identificada como o filósofo. O seu olhar está absorto. Qual é o objecto da sua meditação, a causa do seu distanciamento? Será que se refere à natureza da ciência? Ou será antes que se refere à essência do humano e à sua tentação vertiginosa de abraçar um inumano íntimo e desconhecido que se agita e sussurra dentro de si?