Tuesday, July 24, 2012

O esquecimento nos nossos dias ou o recalmento de Freud


Se o meu ser é outra vez,
sem esperar mais será,
ou voltasse o tempo já
de quanto será depois...!

Autor desconhecido citado por Cervantes
na sua obra D. Quixote de la Mancha


"Tudo se esfumava numa espécie de névoa.
Rasuravam constantemente o passado, a rasura era esquecida
e a mentira tornava-se verdade

George Orwell, 1984


Um grupo de cientistas suecos da Universidade de Lund na Suécia afirma que o cérebro pode ser treinado para esquecer lembranças. Preconiza-se que esta «técnica de esquecimento», como lhe chamam, poderá vir a ser utilizada para um conjunto de psicopatologias, como é o caso da depressão ou do stress pós-traumático.

O autor do estudo, Gerd Thomas Waldhauser, afirma inclusivamente que a sua investigação confirma que podemos esquecer os factos de forma deliberada.

Apesar da escassa informação que pude obter em relação a este estudo, aquilo que li suscitou-me algumas peguntas. São elas:

1) será que é possível esquecermo-nos que nos esquecemos? Isto é, utilizamos a chamada técnica de esquecimento para esquecer um evento traumático. Será possível esquecer que utilizámos a técnica do esquecimento?, dado que se não nos esquecermos de que a usámos o mais provável e natural é surgir uma curiosidade impetuosa que nos corroerá por dentro: "mas o que é que seria tão importante que foi necessário que nos esquecessemos?" Por esse motivo, para que esta técnica ou qualquer outra seja bem sucedida é necessário que ela produza um esquecimento do esquecimento, que impossibilite um qualquer tipo de associação psíquica que nos conduza ao evento que foi erradicado da nossa memória. A tarefa afigura-se complicada.

2) A hipnose foi também utilizada como «técnica de esquecimento». Contudo, a sua eficácia foi demonstrada ao longo do tempo como sendo bastante limitada. Caso contrário, poderia-se, por exemplo, hipnotizar um indivíduo para se esquecer que era fumador. Assunto resolvido. Será esta técnica mais credível do que era a tão afamada hipnose? Ou é o retorno do mesmo, de uma vestuta técnica com novas roupagens?

3) Quais as consequências de um esquecimento? Bom, se nos esquecermos que somos falantes deixamos de saber quem somos. E se nos esquecermos de um evento traumático?

Vejamos alguns casos mais extremados: 1) é possível esquecer o evento traumático como é a morte de alguém querido? O que implicaria a existência desse esquecimento? Se for somente da sua morte, será que o tomariamos doravante como vivo? Isso não seria viável, pelos vários motivos que se possam pensar. Ou o esquecimento incidiria sobre a totalidade da sua existência? Com isso, obliterariamos uma parte fundamental de quem nós somos, a parte do outro que existe em nós, o passado do presente em que nos transformámos mediante a dádiva da sua presença; 2) é possível esquecer a morte? Pensemos em alguém que, de um momento para o outro, ficou com a sua hora marcada. O que fazer para se livrar do tormento, da angústia de um tempo que expira e do abismo que se aproxima a uma velocidade sofregante?; 3) Ponderemos agora um caso que pode suscitar hesitações e ambiguidades: uma criança ou uma mulher violada: não terão elas o direito de verem erradicadas da sua mente esse evento traumático, essa marca que os acompanhará para todo o sempre e que interferirá a cada momento nas suas vidas? Este caso, confesso, poderá apresentar-se como uma excepção para a qual não existem fórmulas morais. Contudo, qual seria a consequência desse esquecimento?

Tal pergunta remete-nos para uma «ética do esquecimento».

Convirá, para reflectirmos sobre o modo como poderiamos abordar essa ética, retomarmos o trabalho de Freud sobre o conceito de «recalcamento». Ora, diz-nos Freud, o recalcamento refere-se precisamente a uma lembrança ou uma pulsão cujo acesso à consciência foi barrado. A consequência desse esquecimento, isto é, da força que instaura a vigência de um recalcamento, produz, diz-nos Freud, um «retorno do recalcado». Por outras palavras, isso que está recalcado retorna por vias estranhas à consciência, sobre a forma de sonhos, sintomas ou de angústia.

Trata-se de um esquecimento no qual o esquecido não se quer ir embora, não nos quer deixar. Isto é: se nada dele sabemos (ou antes, nada queremos saber), não é por isso que ele não queira nada connosco. Se é verdade que para nós ele não existe, ele existe em nós e com ele a angústia que provoca. Existe o que se chama de formações do inconsciente, as vias de retorno do que foi excluído da consciência num envoltório irreconhecível. O que aprendemos com Freud é não existe recalcamento sem retorno do recalcado e esse retorno é aquilo que se paga pelo que se esqueceu.

Mas o problema é mais complexo, porquanto Freud distingue o recalcamento primário de um secundário. De modo resumido, o recalcamento primário corresponderia, de acordo com a leitura de Lacan, ao modo como a linguagem ao se introduzir no corpo, ao colonizar a carne e recalcar um hipotético puro estado de natureza primevo, nos faz cair em nós, nos arranca à ausência de nós e nos instala como seres desejantes, como seres afectados por um vazio irrevogável que exige um preenchimento impossível. Este arrancamento à ausência de si é, por um lado, um parto sempre traumático (como Freud procurou teorizar com o complexo de castração) e, por outro, constitui a dimensão psíquica cerzindo-a com a corporal através do que Freud denominou como fixações da libido, as marcas em torno das quais se modulará não só o carácter de um indivíduo, como também aquilo que Lacan formulou como o fantasma fundamental.

Por sua vez, o recalcamento secundário, o recalcamento propriamente dito, é o recalcamento que se impõe aos acontecimentos contingentes do rumo da vida, acontecimentos estes que podem (ou não) adquirir um valor traumático em função da proximidade que estabelecem com a força de atração do recalcamento primário e do fantasma fundamental (por exemplo, um determinado evento da vida quotidiana pode desencadear um medo ou aversão ou obsessão inexplicável em relação algo - são reacções que correspondem já uma actuação do recalcamento, que é nuns casos melhor sucedida e noutros pior). Este recalcamento corresponde pois a uma força de bloqueio e de exlusão de todo o tipo de material ideativo que não seja tolerável para a consciência.

Dito isto, estaremos em condições de perceber que não só o esquecimento que se procura promover cairá sempre no âmbito de um recalcamento secundário, como também é o inverso da proposta de Freud. A sua proposta é de procura de verdade, não de escondimento, esquecimento, recalcamento, mentira.

Convirá, por isso, olhar com atenção para o que nos dirá esta técnica (possivelmente financiada) sobre o «espírito» do nosso tempo?

Retomemos, pois, a última questão apresentada: uma pessoa que foi vitima de um advento traumático tem ou não o "direito" a esquecer-se dele? A resposta reside, parece-me, no próprio modo como ocorrerá esse esquecimento. E aqui poderemos circunscrever o plano em que se pode conceber uma ética do esquecimento.

Em primeiro lugar, a questão que tereremos de colocar é: em que medida uma tal técnica é ética, uma vez que se somente realizar um recalcamento sem se considerar o chamado retorno do recalcado poderá estar-se a sujeitar aqueles que a ela se submitem a uma guerra sem quartel contra si mesmos. Basta termos em consideração o que Freud assinala ao asserir que "um representante pulsional desenvolve-se com menos interferência e mais profundamente se for afastado, por meio do recalcamento, da influência consciente. Prolifera na escuridão e toma formas extremas de expressão" (O Recalcamento, 1915).

E se essa técnica eliminar o retorno do recalcado (a pergunta não é meramente da ordem da ficção, mas é uma possibildiade que a técnica nos poderá presentear no futuro)? Tornar-se-à ética?

A questão aqui torna-se extremamente problemática. Foi por isso mesmo que introduzimos a distinção entre o recalcamento primário e secundário. Até onde se pode avançar na remoção do retorno do recalcado? Quais as suas consequências? Temos um exemplo que nos permite pensar essa hipótese na obra 1984 de Orwell. Quando Winston, após ser submetido a uma lavagem cerebral pela Polícia do Pensamento, em que um dos seus objectivos passaria por «reeducar» o sujeito a raciocinar 2+2=5, isto é, esquecendo-se do seu resultado como 4, o que sucede é que Winston sabe que o resultado não é 5, mas também não se consegue lembrar que é 4. Ele fica tomado pela insistência de procurar uma resposta cuja verdade não pode ser lembrada (essa insistência é um dos nomes do «sintoma»).

O que sucede aqui pode ser novamente explicitado com o recurso a Freud. O recalcamento secundário concerne não somente a um dado conteudo ideativo (a lembrança de um trauma). O que constitui o valor traumático de um conteúdo ideativo é, diz-nos Freud, o investimento pulsional desse conteúdo. A remoção do conteúdo ideativo que o recalcamento opera não suprime, por isso, a força pulsional que lhe inere e que foi desencadeada pelo evento traumático, pelo que esta pode assomar-se mediante diferentes destinos que decorrem do próprio modo como o recalcamento incidiu nessa força pulsional. (Nesse sentido, cabe-nos acrescentar que quando Freud, na sua obra Além do Princípio do Prazer, afirma que a psicanálise não é uma arte de interpretação, tal afirmação deve-se à constatação de um incurável que radica na nossa vida pulsional). Um deles pode ser mesmo o de inundar o sujeito com uma angústia sem nome (ou seja, sem qualquer ligação com uma representação ou conteúdo ideativo).

A hipótese que este exemplo nos permite equacionar é a de um risco severo de se produzir buracos dentro do próprio sujeito, buracos estes que se revelam não como meras falhas, mas como autênticos buracos negros; o perigo de se animalizar as pulsões e as converter em forças indómitas, cruas e bestiais.

Qual é a alternativa? Ou antes, é a pergunta que nos devemos colocar: existirá alternativa à própria vida como processo de esquecimento, ou melhor, à elaboração psíquica da vida no processo de se viver como processo de esquecimento?

Sinto-me tentado em relação a este tema a deixar mais algumas perguntas e considerações que têm como propósito procurar pensar a problemática com que seremos confrontados com o aperfeiçoamento deste tipo de intenções/inovações:

A que nos conduzirá no futuro a apologia de tais técnicas de repressão de lembranças, sejam elas técnicas de esquecimento por actuação química, provocadas por manipulação genética ou por quaisquer outros meios? A que conduzirá uma ideologia utilitarista, mecanicista e higienista numa sociedade que é instigada para se tornar revindicadora de tudo o que há a revindicar, a consumir tudo o que é possível até à exaustão? Como estas técnicas serão implementadas na sociedade da banalização do consumo, numa sociedade em que vigora o imperativo da ultrapassagem de todos os limites, do gozar a qualquer preço, do consumo desenfreado, do just do it, mas que também navega ao sabor da ideologia de um grau zero de sofrimento e da menor tolerância face à dor que daí decorre? Qual será o limite da sua utilização? Vamos chegar ao ponto de eliminar a mínima lembrança desagradável que possa existir em nós na procura de eliminar a angústia que as acompanha? Ficaremos adictos do esquecimento, da mentira? Seguiremos o caminho de nos tornarmos incapazes, impotentes e desprovidos de «ferramentas espirituais» para lidar com as dificuldades e amarguras da vida?