Tuesday, February 20, 2007

Surdez e a "paralisia da crítica"

"Dezassete em cada mil pessoas com menos de 18 anos não ouvem a 100 por cento e este é um fenómeno que tem vindo a crescer, como resultado dos estilos de vida (sublinhado meu) dos jovens e adolescentes. Por exemplo, quem possui um leitor de MP3 e abusa dos "head-phones" - ouvindo música alta ininterruptamente durante durante muitas horas - pode descobrir, mais tarde ou mais cedo, que já não consegue captar todos os sons." (Jornal Metro de 19 de Fevereiro de 2007)

Resta-nos reflectir, a partir de algumas das frases que, eventualmente, se possam sublinhar nos discursos que constatam esta inédita surdez contemporânea.

Como pensar este estilo de vida, a dos utilizadores compulsivos "head-phones"? Meramente como um incauto estilo de gozo pessoal, como um estilo de gozo para o qual se terá de desenvolver toda uma pedagogia educacional?

A minha opinião será outra.

Não se pode desvincular este estilo compulsivo de vida, como lhe chamam, um excesso digamos, da estrutura e funcionamento da sociedade onde ele se materializa.

A questão que eu coloco será: até que ponto esta surdez, que tem um direito e um avesso, não será a "surdez" propositadamente visada pela «indústria cultural», uma surdez assente numa sonoridade constante, repetitiva e ininterrupta que coloca em transgressão um espaço para o silêncio, silêncio interior, silêncio fundamental para o advento do "sujeito crítico kantiano" e do "sujeito freudiano" (o do inconsciente)? É fácil verificar-se como «indústria cultural» produz a sua massificação por "fórmulas" cuja repetição são, à priori, garantes de recordes de vendas e de lucros espectaculares, fórmulas que primam no que delas entra facilmente no "ouvido", como se costuma dizer. É também fácil verificar-se uma presença cada vez mais omnipresente do ruído cultural, seja no metro, nos nossos carros, nas salas de espera, etc, e uma correlativa submissão não reconhecida das "massas" a esse ruído.

A «indústria cultural» é, sem dúvida, um instrumento do discurso capitalista, naquilo em que massifica toda uma "fórmula cultural" para a qual não seja necessário grande juízo crítico, alienando o sujeito numa insuspeitável "paralisia da crítica", como Marcuse lhe chamou.

É o gozo do instante do ouvir, um instante que se pretende cada vez mais que subsista numa continuidade interminável sob a vertigem do imperativo de Gozo mercantilista: "Ouve" ("ouve desenfreadamente e independentemente das políticas pedagógicas que nós também criarmos"), gozo onde o sujeito, numa existência sob a batuta do ruído exterior, não pensa e quando pensa é sobre o que lhe é dado para o pensamento, sobre um pensamento consumível.

O que é que se pode perceber do discurso da audiologista Cristina Korn no Jornal Metro já referido, quando afirma: "A maior parte dos meus doentes mais novos, antes de quererem saber se vão passar a ouvir melhor, preocupam-se com o tamanho e visibilidade do equipamento", senão qualquer coisa da ordem dessa paralisia?

Este é o que referi de "direito" da surdez.

O "avesso", que pode ser lido, apesar de tudo, como um factor de esperança, é que possa existir nesses danos irreversíveis do tímpano uma intencionalidade, digamos com Freud, inconsciente: a provocação de surdez como uma forma de defesa contra o excesso de ruído exterior, como uma forma de o sujeito se poder ouvir a si próprio num silêncio, infelizmente, irreversível. Condição última para que ele possa ser sujeito livre desse canto de sereia, consumista e consumidor.

Apanágios de uma sociedade onde o verdadeiro pensamento, o pensamento livre como era o de Nietzsche, é incomodo e abolido em prol das condutas politicamente correctas, esses cujas palavras são compostas em eufemismos, dadas à priori para que o sujeito não tenha que pensar muito no que dizer... nem naquilo que ouve.