Thursday, March 08, 2007

Questões sobre o Actual e o Virtual

Como frequentador do metro, é costume meu aproveitar o jornal gratuíto Metro para passear o meu olhar sobre o Actual a que as suas letras se reportam.

Confesso que o jornal acaba por ter algum interesse, até por englobar o Actual/(Virtual) do funcionamento psíquico, analisado predominantemente por psicólogos, psiquiatras e psicopedagogos.

Dessa amálgama de vozes opinativas, cada vez mais fico com a percepção de que existe um hiato que se expressa entre a análise que dessas vozes incide sobre o funcionamento psíquico e o inerente funcionamento da sociedade. Talvez seja importante interrogarmo-nos sobre esse hiato, bem como se não presidirá ele a uma forma (hiper)moderna de recalcamento (1).

Esse hiato é também o hiato entre o saber de uma Razão que se move num determinado paradigma, neste caso o paradigma científico inerente ao discurso capitalista, e um irredutível non-sense do Real, neste caso, o sintoma.

Vejamos:
a primeira notícia refere-se à publicação do livro Javier Urra, um livro que me parece muito interessante, chamado "O pequeno ditador", e que chama a atenção para o aumento alarmante da agressividade nas crianças e nos jovens; a segunda notícia refere ao facto do diagnóstico do excesso de peso infantil ter triplicado desde os anos 60.

Concomitante com isto, também é verdade que o número de psiquiatras, psicólogos e psicopedagogos tem aumentado exponêncialmente.
É caso para dizer que parece existir aqui algo de verdadeiramente intratável, que eu pretendo situar aqui como sendo da ordem daquela alegoria: "o que é que veio primeiro: o ovo ou galinha?"; alegoria que me permite vectorizar uma direcção em relação a esse "algo" que não funciona, ou melhor, "diz"-funciona de forma paradoxal. Todos poderemos constatar que quanto mais saber e mais meios existem, mais os sintomas se tornam resistentes e abundantes.

Interroguemo-nos apenas, por ora, sobre estas 'rasgaduras' paradoxais na "microfísica do saber" e com a condição de avançar sem medo de fazer descobertas.

O que é que "dizem" (sem que se as ouça) estas "novas epidemias psico-patologias", como já lhes chamam?
Será que assinalam que a "máquina psi" está fadada a não conseguir dar conta do recado?
Ou será que, por outro lado, a "máquina psi" tem como avesso do seu discurso o facto de participar como adubo dos "sintomas" que ela procura combater?

Conecemos por ponderar que o hiato entre os saberes e o sintoma tem uma face visível no imperativo de cura. Quer-se curar, curar, sob um imperativo dever ético de cura, de como fazer para curar, o que saber para curar, e tudo isso sem se saber muito bem o que se cura. O sintoma, é claro, é a resposta que basta.

Não é uma novidade afirmar-se que estes sintomas, a agressividade, a obesidade, assim como, a depressão e a hiperactividade, etc, são produzidos pelo próprio movimento da sociedade capitalista (nem para todos - à quem diga que é genético, biológico, etc, o que me leva a interrogar, também, porque motivo esses genes só acordaram agora).

Indaguemo-nos então sobre o que são estes sintomas, na medida em que a sua produção tem uma génese no laço social, tomando a reflexão do falecido Baudrillard como causa formalis: "O que toda uma sociedade procura, ao continuar a produzir e a re-produzir, é ressuscitar o real que lhe escapa" (Simulacros e Simulações).

Digamos, então, com Baudrillard que o que "diz"-funciona é o Real.

Munidos desta proposição, teremos de interrogar igualmente se, de alguma forma, a "máquina psi" participa n'isso através dos seus saberes tributários de uma Aufklärung, d'isso que é uma falta de Real patrocinada pelo discurso capitalista, se participa na ignorância de que, afinal, o sintoma não é para ser eliminado mas para ser tomado como o farol do Real?

Não é através das políticas psicologizadoras e psicopedagógicas, com a intenção de ensinarem os pais a "educar" os filhos(/consumidores), que se acaba por des-substâncializar a verdade, o real da educação, de uma educação mais afectiva que racional e que educou a humanidade até agora, sem o auxílio dessas políticas?

Não é essa a forma de se des-habilitar os pais de algo que lhe é intrinsecamente inconsciente, para se homogenizar a educação a partir de um saber "politicamente correcto", a educação propícia para o advento da (in)essência que Marcuse designou de homem Uni-dimensional, o homem homogeneizado? Uma resposta a estas políticas educacionais está no livro de Javier Urra: "Os pais são uma espécie de mal necessário, que muitas vezes se resume ao papel de multibanco".

O sintoma contemporâneo expressa um desnorteamento inédito do sujeito face a dois tipos de estrangulamento des-substâncializadores: 1.º - um desnorteamento face a si próprio, uma vez que ele já não tem motivos para se interrogar do que é, pelo motivo de que a ciência é portadora de um conjunto de saberes que lhe pode fornecer essas resposta. Esse desnortemento é o desnorteamento do sujeito que face a um-tudo-que-se-explica não sabe como interpelar e interrogar a sua própria existência, interrogação d'isso que não se explica, esse acontecer inefável, interrogação pela qual se funda simultaneamente o seu próprio saber, inalienável e intransmissível;
2º - um desnorteamento face à pergunta - o que fazer (da minha existência)? A esta 2ª questão, que acaba por ser central na Crítica da Razão Prática de Kant, o capitalismo propõe: o consumo.

Este é pousio onde o recalcamento moderno opera pelo des-encontro entre a actual análise da especificidade do sintoma contemporâneo (os sintomas já não são os mesmo que outrora) na sua urdidura com a especificidade da sociedade contemporânea, na rejeição em se olhar para o avesso do que é o Olhar da Razão consciente e fundamentada num imperialismo do saber, para o avesso da Razão, por sua vez, colonizada pelo discurso do capitalismo.

Precavamo-nos com Freud, ao considerar a educação como um dos três impossíveis, por aquilo que ela tem de Real como Impossível, como nos ensina Lacan. E é esse Real que, direi eu, retorna sob a forma da agressividade e de obesidade, como que a tentar furar essas políticas politicamente correctas, como que a apelar aos pais para que sejam "Pais" e não Robots de um saber, como que a iluminar os rochedos onde esses saberes não cessam de encalhar no Real. Por outro lado, talvez seja esse encalhar um factor de lucro, pois é o capitalismo uma das formas mais acuradas de interpretação do desejo, desse desejo que é sempre desejo Outra Coisa.

Talvez falte isso mesmo, para que a educação do homem Uni-dimensional possa ser bem-sucedida, que os nossos filhos sejam educados por Robots já "programados" para o efeito. Essa seria a forma de se garantir uma educação verdadeiramente "Igual" para todos. Bom, hoje em dia já acabamos por entregar as crianças aos cuidados dos tamagotchi's...



(1) Este recalcamento considero ser o recalcamento contemporâneo, promovido pelo enlaçe entre o discurso do capitalismo e do discurso da ciência, que pesa sobre o inconsciente: a forclusão do inconsciente, no qual a descoberta de Freud tende hoje, e cada vez mais no meio da "saúde mental", a ser considerada somente como uma peça de museu.