Sunday, August 10, 2008

Marx, Freud e Nietzsche



Três nomes cuja obra supostamente deveria ser intemporal. Três obras de ruptura, de revolução (revolução - uma palavra que hoje está fadada a ser proscrita da linguagem corrente). Se Nietzsche, como diz o professor Mário Jorge de Carvalho, é um autor onde os "pulgões" facilmente se podem acomodar (subvertendo o seu sentido), já em Marx e Freud a situação adquire contornos diferentes. Freud à muito que quase sucumbiu ao recalcamente civilizatório e aos fetiches teóricos. Se a descoberta do inconsciente foi algo muito controverso na sua época, é o carácter revolucionário dessa descoberta que hoje custa a manter vivo, como pudemos ver no "mundo psy" com as realidades empíricas das psicologias "científicas" e das psiquiatrias, com toda uma máquina industrial de psico-teleologias, assim como poderemos observar um vasto mercado para a "psicologia ortopédica" nas práticas das avaliações psicológicas nas escolas e nas prisões, tanto como nas empresas de recrutamento e selecção, uma actuação que "consiste em prender cada indivíduo a uma identidade sabida e conhecida, bem determinada de uma vez por todas" (Deleuze) que corresponde, por sua vez, aos processos de normalização e reciclagem humana, de alienação das forças da vida pela sua re-condução para o mundo do mercado (do consumo e do trabalho). É neste mundo do mercado que o inconsciente actualmente é uma ferida insuportável, a ferida do sintoma-sujeito (do desejo) como a verdade desse desejo. Se, por um lado, se incita vorazmente sujeito a satisfazer com uma gula insaciável o seu desejo, a gozar sem limites as potêncialidades deste admirável mundo novo, por outro lado, nada se sabe sobre o que fazer com os sintomas que daí advêm. Mais vale a pena calá-lo, sedá-lo, desprezá-lo, medicá-lo, instrumentalizá-lo, explorá-lo. Existe uma indústria para tudo isso. Curiosamente, é aqui que Deleuze propõe a luta por uma subjectidade moderna enquanto resistência a estas formas de dominação identitárias (cujo único propósito é o da melhor domesticação do ser humano), até porque, acrescentarei, o inconsciente é o que faz explodir as identidades, é o que troca e sempre trocará as voltas aos leitores assíduos das bíblias de psicopatologia e que, enquanto tal, nunca poderão entender que o (sujeito do) inconsciente também se expressa como um sintoma-resistência, como um acto de criação enquanto exercício subversivo d'isso que resiste à sua captura (basta observar os "criadores" que, para surgirem como tal, rompem com um certo doutrinismo, estagnação, e idolatrismo académico - toda a criação é da ordem de uma ruptura, ultrapassagem). O sintoma é da ordem do incapturável, do incurável, como propõe Lacan (a proposta de Esquizoanálise de Guattari acaba por ir nesse sentido, se bem que concebida de uma perspectiva diferente da perspectiva de Lacan).

Se em relação a Freud o panorama é negro, para Marx não é melhor. Marx, hoje, é um autor incomodativo, nomeadamente para as pessoas que cumprem a sua vida como "funcionários do capitalismo" (de certa forma o somos todos, uns mais, outros menos, uns mais cegos, outros mais lúcidos, uns com mais fervor, outros com mais resistências). É um eco do passado que não se quer ouvir. O que é que isto quer dizer, "funcionários do capitalismo"? Para mim, representa o conjunto das pessoas que cujo o trabalho é uma peça central, não como factor de sobrevivência, de ganhar a vida, de um desempenho que corresponde a uma parte da vida, mas como um peso predominante e avassalador sobre os outros domínios da vida, sobre a generalidade da existência, cumprindo assim o super-ego do capitalismo ("a vida a isso obriga"), a voz que ressoa inconscientemente como a necessidade de obtenção de sucesso pessoal, de um estatuto social e de um exercício de poder que nunca é demais, bem como do "Capital" que sustenta esse estatuto e esse poder (a luta puro prestígio em Hegel é também uma luta pelo estatuto e pelo poder, tal como se passa no darwinismo social do capitalismo), integrados na lógica do Espírito do Capitalismo, tal como descrito por Max Weber, ou seja, movidos por uma "Ética Protestante" (trabalho, trabalho, trabalho) na perseguição dos sonhos e ilusões, direi eu, das cenouras que o capitalismo por detrás de nós nos coloca à frente de um olhar estreitado pelas palas. "O trabalhinho é muito bonito" (...) "a tua política é o trabalho, o trabalhinho", diz-nos José Mário Branco.

É lógico que ao nos guiarmos por este farol, Marx torna-se um autor incómodo, ou como dizem antiquado, ultrapassado, estudado por pseudo-revolucionários, tal como é argumentado nos discursos críticos em relação a Freud. O incómodo torna-se visível por ser um incómodo menos intelectual do que emocional, ou seja, com menos fundamento na sua obra do que nos ecos do passado. As críticas tecidas acabam por ser sustentadas numa base desprovida do conhecimento do seu texto, como se o assunto não pudesse ter mais seriedade do que uma conversa de café. Acima de tudo, permanece um certo desconhecimento sobre a obra de Marx, a não ser que era um defensor da ditadura do proletariado, que escreveu O Capital como crítica da sociedade capitalista, e tudo em função da confusão de Marx com marxismo e com comunismo (como se tudo fosse o mesmo). Talvez isso seja o suficiente para não se querer saber mais dele, para provocar resistências. Se atendermos ao facto de que o não querer saber consiste em nada mais do que aquilo que Freud explicitou com o conceito de recalcamento, é fácil constatar-se que o que está em causa é o recalcamento de Marx, uma pretensão que, na minha opinião, é a tentativa de se fazer surgir um segundo apêndice no lugar do que anteriormente se chamava de cérebro.

No entanto, e em abono da verdade, um "retorno a Marx" (sem qualquer conotação religiosa, doutrinária ou partidária, mas crítica), no sentido de se ir para além dele, de se reinventar o seu espírito e o seu texto revolucionário, hoje, é um trabalho mais necessário do que nunca (tal como em relação a Freud) do ponto de vista de uma teoria crítica da sociedade (devemos em absoluto cortar com os excessos do marxismo no passado - está em questão o que é possível produzir a partir de Marx, bem como de outros autores incontornáveis). É a vida que reclama por isso, a nossa vidinha, a vida que gastamos como se de dinheiro se tratasse (inclusivé nos consultórios daqueles psicólogos e psiquiatras que actuam como os normalizadores, como os re-adaptadores do sistema, ou como George Orwell designava, a polícia do pensamento), a reinvenção de um estilo de vida diferente, menos cego e a-crítico, egoísta e individual, menos material e consumista. É nesta lógica da inevitabilidade do estilo de vida que levamos, "a vida é assim"... dizemos, quão amarrados que estamos ainda à tradição judaico-cristã, que perdemos o tempo da vida dos outros ao perdermos a nossa, perdemos a sua velhice, abandonando os nossos avós ou pais em lares, perdemos o florescer de outros, abandonando os nossos filhos às televisões e em cresces, privando-os e privando-nos do partilhar do tempo único que é o que cada um vive, como se de facto a vida fosse assim, uma imposição da natureza e não do homem, e no nosso caso presente, da estrutura de dominação capitalista e dos seus mandamentos de apuramento do faro pelo lucro. Faz-me lembrar essa segunda natureza que Pavlov impôs ao cão com o condicionamento. Por nossa vez, a nossa campaínha começa logo de manhã com despertador regulado pelo Outro.

Para justificar a importância de Marx, nem é preciso o referir-se da miséria extrema em África (estão tão longe... longe demais para nos preocuparmos com eles, é o que às vezes me parece ouvir em determinados discursos...) e a imigração clandestina (...que quando chegam às nossas portas é o xenofobismo o que ameaça fender as nossas máscaras altruístas e as dos nossos políticos como nossos representantes), as mudanças climáticas, a subida do preço dos combustiveis e dos bens alimentares, etc, etc. Basta referir que se alguns "funcionários do capitalismo" são bem sucedidos, a grande maioria dos "candidatos" (alguns existem que não precisam do estatuto e das "medalhas" com que o capitalismo os recompensa e, como tal, nem se constituem como "candidatos") não teve a mesma sorte. Trabalham com as suas licenciaturas e mestrados em caixas de supermercados, em call-centers desumanos, ou passam a vida a serem explorados por empresas Outsourcing, numa precarização sempre crescente do mundo laboral para que uns poucos tenham casas caríssimas no centro de Lisboa, juntamente com os seus Porsches, Jaguares, Mercedes, Audis e BMW topo de gama; pagam a roubalheira desmedida dos bancos, bem como fortunas para criar um filho em cresces particulares (porque as do Estado só são acessíveis com uma boa cunha - assim ouvir dizer, até porque não quero ser processado por difamação) - entramos também na época do filho único, e tal como os chineses, não o fazemos livremente. Sem falarmos no fantasma do regresso da escravatura, como ilustra a proposta da UE para aumentar o horário da semana de trabalho para 65 horas (em determinadas circunstâncias).

Nada justifica as grandes desfasagens salariais, nem mesmo os discursos daqueles que apregoam que muito investiram para chegarem onde chegaram. A partir daí nada mais há a dizer, segundo dizem, tudo o que foi ganho foi bem merecido e mesmo assim pouco (quase que aposto que é um discurso que também circula não apenas pelos lábios das centenas de "candidatos" a novos-ricos, mas como também dos grandes directores das grandes companhias do "Estado" que recebem "insuficientes" milhões de ordenados e reformas). Se, na verdade, a procura da excelência deve ser recompensada (porque em qualquer tipo de sociedade também existem aqueles que só se sabem por à sombra da bananeira), nada justifica a bestialidade e a disparidade do que se passa hoje, aliás como Marx já tinha avisado no passado. São esses argumentos que originam e patrocinam os momentos dissociados da socialização de valor (Robert Kurz), que justificam a exploração de todos os outros não integrados nessa lógica (os dissociados), seja em África, na China, etc., ou mesmo no interior do próprio mundo Ocidental, patrocinando-se autênticas pedradas no que deveria ser o exercício dos direitos humanos. São esses argumentos que estão na base da procura glutona, cega e desesperada (como se vê no caso dos cães que estão atrás das cadelas com cio) do lucro, da cristalização de uma sociedade, de um mundo (pois cada sociedade acaba por recriar, como micro-mundo, e ainda mais nos tempos da globalização, o que se passa por todo o mundo) cada vez mais dividido entre cidadãos de primeira e de segunda (e mesmo entre aqueles que aparecem como "sans papiers", como o que Agamben designou de "Homo Sacer").

Poderiamos referir alguns exemplos a propósito do que Kurz chama de momentos dissociados: o que Marx à mais de 100 anos designava como o exército de reserva de desempregados, que hoje tem uma plena funcionalidade como um dos "mecanismos" importantes para manter os salários baixos e precarização dos vínculos laborais, bem como o lucro elevado para os grandes capitalistas - esta dissociação é intrínseca, é um produto inerente ao entrecruzamento da democracia com o capitalismo: não é o caminho de uma sociedade com valores cada mais iguais e partilhados o que assistimos, na medida em que o desemprego tal como hoje existe é um fenómeno derivado da modernidade industrial, é absolutamente necessário ao capitalismo na sua conquista do lucro, como Marx demonstrou; um outro exemplo, que remonta à Revolução Francesa e tem igualmente o previlégio de demonstrar a sua actualidade: a abolição da escravatura nos EUA (em Dezembro de 1965 através da 13ª Emenda Constitucional) não derivou dos Princípios Universais da Revolução Francesa (1789/1799), 65 anos antes, como o reconhecimento do Outro como conquista social, mas, como propõe Kurz, porque a escravatura se tinha tornado disfuncional no processo produtivo dos EUA; curiosamente, é interessante que alguns dos representantes da Revolução Francesa tenham sido os responsáveis pelo esmagamento da insurreição dos negros no Haiti, apesar destes invocarem os mesmos princípios de Liberdade, Igualdade e Fraternidade (vemos o que se passa hoje com a diferente atitude insalubre - consoante sejam países com matérias-primas ou não - do mundo ocidental para com países como o Sudão, Angola, Burundi, Ruanda, Serra Leoa, etc.,)

Por isto mesmo, esquecer Marx, torná-lo apenas uma conversa de balcão, de entretenimento, são as armadilhas actuais para a sua desacreditação, para a desacreditação do potencial revolucionário do seu texto (ou de qualquer outro texto nessas condições), para não o levar a sério e ainda menos ter que pensar criticamente nos temas que ele problematizou. Mas não basta debruçarmo-nos criticamente sobre Marx. Há que fazer transpor esse potencial revolucionário para o Real como o que Deleuze designaria de linha de fuga. O que isso quererá dizer, é o que temos de descobrir, de produzir.

Igor