Wednesday, May 02, 2007

A Psychê hoje e o seu denominador ideológico invisível

Vejamos algumas notícias que se reportam à forma de como hoje lidamos com a vivência subjectiva de nós próprios (que, para o dizer de forma um tanto ou quanto tosca, indelevelmente se 'compõe' por acordes menores de tristeza, por acordes de sétima de alguma estranheza e não apenas de acordes maiores de alegria) e que perguntas poderemos formular a partir do material reflectido:


1 - Começo com a antropomorfização da depressão nos nossos amigos caninos: o laboratório farmacêutico Eli Lilly lançou o "Reconcile", um antidepressivo para cães. Sem estar a vilipendiar o referido fármaco, terá alguma utilidade mais do que ser um bom negócio e contribuir para o crescimento financeiro de todo um mercado que gira em torno da indústria farmacológica?

Qual é a ideologia que, sem uma contestação 'aparentemente' convincente, subjaz à institucionalização de um conjunto práticas sociais de que esta notícia é um exemplo ? A de um inocente e natural caminho evolutivo darwiniano onde se descobriu a depressão nos cães, como um 'desvio', uma mutação a essa evolução, e a correspondente tecnologia para corrigir esse desvio, de forma análoga ao que se passa com o ser humano?

Talvez seja igualmente uma excelente oportunidade de negócio para os psicólogos cognitivo-comportamentais, a possibilidade de criação de um nova área de especialização dirigida a uma nova população, a população canina. Melhor do que ninguém, eles seriam os legítimos representantes da vanguarda no projecto de desenvolvimento de uma psicoterapia para cães, projecto que começou por volta de 1920 com o desenvolvimento do condicionamento clássico por Pavlov.


2 - Segundo o Infarmed os portugueses gastaram 80 milhões de euros em sedativos, hipnóticos e ansiolíticos, o equivalente ao custo total do novo estádio de Alvalade.

Por enquanto, só se sujeita à medicação psicofarmacológica quem o decide. Contudo, poderemos cogitar para o futuro, sendo inventada a tão desejada pílula da felicidade com que Aldous Huxley parodia em "Um mundo feliz", o dever e o direito de tomá-la como complemento (não de fortalecimento ósseo) psicológico.

Isto porque, a ver o que se passa em Portugal (como no resto do mundo) ao nível da saúde mental, com a primazia da psiquiatria e da prescrição de fármacos, é de inferir uma relação íntima entre a indústria farmacológica e a estrutura de dominação actual, relação pela qual a referida indústria se consuma como sendo uma disciplina do que Foucault designou de anatomia política do corpo humano, pela qual se exerçe o poder discplinar sobre os corpos. É bem visível que o que está em causa na farmacologia não é devolver a autonomia ao sujeito, pois o sintoma é já um dizer (se bem que não reconhecido) sobre uma autonomia, por si mesma, sintomática, mas sujeitar o indivíduo a um colete de forças químico disciplinador que neutralize o que de questionamento nele insiste, que imobilize o que do sujeito funciona no sintoma. De que outra forma explicar a existência de abundantes stocks de fármacos e, de forma concomitante, uma igual abundante prescrição farmacológica?


3 - Esta notícia não se referirá directamente à Psyché, mas permitirá à posteriori fazer a relação com a notícia anterior:

A associação para a defesa do consumidor DECO acusou, em Março de 2007, os médicos pelo acto de prescrição de antibióticos sem necessidade para o efeito.

Será de recear que o mesmo se possa passar com a prescrição de psicofármacos?


4 - Uma palavra sobre a violência doméstica: Cresce número de filhos que batem nos pais.
Como ler este sintoma, o da des-autorização dos pais? Será que as alterações legais que têm existido nos últimos anos conjuntamente com as práticas psicopedagógicas (diga-se que uma grande parte delas muito pouco lúcidas) que se procuram instituir tem algum contributo?

Parece-me, sem dúvida, que a psicopedagogia é o substituto da autoridade parental, é o saber do qual os pais se socorrem na educação dos filhos perante a confirmação da impotência da sua autoridade. Lacan nos 60 e 70 já fazia a leitura do impacte na contemporaneidade do que ele designou o declínio da função paterna. No programa "Portugal: Um retrato Social" do António Barreto na RTP1, pude assistir a qualquer coisa dessa ordem: os pais às 5h da manhã à espera que os seus filhos de 14 e 15 anos saissem das discotecas. É um fenómeno novo, interessante e bastante ilustrativo do desamparo (hilflosigkeit) dos pais face à educação dos filhos, até porque é sobre as gerações mais novas que os imperativos da sociedade de consumo parecem ter mais sucesso.

5 - Novo género de videojogos dedica-se à saúde mental: Um grupo de produtores de jogos estão a desenvolver um novo género, que, segundo alegam, ajuda a melhorar a auto-estima e a saúde mental dos utilizadores. O canadiano Mark Baldwin, professor de psicologia na McGill University espera que o jogo faça com que as pessoas «se sintam bem com elas próprias». O videojogo, criado com base em pesquisas sobre psicologia social, pretende que os jogadores seleccionem um rosto sorridente e aprovador por entre um conjunto de outras caretas, tentando condicioná-los a procurar a aceitação e ignorar a rejeição.

Não deixa de ser tentador confrontar esta tese com uma outra: segundo Ralf Thalemann, do Instituto de Medicina Psicológica da Universidade Charité de Berlim, no V Fórum Europeu de Investigadores de Neurociência, afirma que os videojogos criam dependência e actuam sobre o cérebro da mesma maneira que o álcool ou a cannabis.

Deste confronto coloco-me uma questão: serão esses videojogos dedicados à saúde mental uma metáfora do colete farmacológico?

O que me leva a uma outra questão: não farão parte das disciplinas do corpo, dos objectivos da actual estrutura de dominação que é o discurso do capitalismo, um grande conjunto de saberes e práticas provenientes da psicologia, da psiquiatria e das neurociências, na medida em que, actualmente, são práticas que concorrem para a domesticação do sujeito sob a dissimuladora designação de 're-educação emocional/afectiva', práticas legitimadas sob a alçada de interesses obscuros de dominação social?


6 - Segundo uma pesquisa do grupo Gartner, No ano de 2010, 70% da população nas nações desenvolvidas passará 10 vezes mais tempo por dia a interagir com pessoas no mundo virtual do que no mundo físico.

Face às dificuldades que se tem em domesticar o Real, recalcitrante por natureza, talvez as possibilidades de sucesso de uma estrutura de dominação sejam superiores num mundo virtual à similar Matrix dos irmãos Wachowski. Com um bocado de sorte, talvez possamos ser acompanhados pelos nossos cães.


Igor