Friday, May 01, 2009

Criticas a Alice Valente - em defesa do inconsciente freudiano

Depois de ter lido o post da Alice - http://alisenao.blogspot.com/2009/04/evolucao-da-inteligencia-ou-ao-que-nos.html , que, de resto, achei interessante, não sem sentir um certo incomodo em relação a alguns pontos que não se prendem directamente ao conteúdo do texto, mas que são transversalmente presentes em algumas das suas publicações ao longo dos anos: estes pontos referem-se a uma oposição crítica em relação à psicologia e à psicanálise que, quanto a mim, nalguns casos gritantes é completamente infundada e equívoca, ou até mesmo um exercício de jogar às escondidas do qual não consigo perceber a pertinência.

Respeito a sua posição, mas neste caso específico não concordo com ela. Longe disso.

Formulo esta crítica e resposta, em primeiro lugar, porque não defendo dogmas de fé nem idolatrias, nem tão pouco argumentos de autoridade. Não os concedo a ninguém, nem a Freud ou Lacan, nem a Deleuze nem a Marx, nem a qualquer outro. Apelar-se à crítica não é apelar-se à Bíblia.

Dito tal, não fica invalidado o facto de que não acredite que certas perspectivas e certas práticas fazem parte do património da humanidade, de uma conquista sua inalienável. Uma delas, quanto a mim, é a descoberta de Freud, e não tenho qualquer tipo dúvida quanto a isso. E porque não existe A psicanálise (tal como não existe A filosofia), mas existem diferentes posturas e perspectivas teóricas, práticas e éticas, não posso subscrever o meu assentimento a todas elas só porque se enquadram na designação generalista de Psicanálise.

Tal quer dizer que, quanto a mim, algumas das críticas que a Alice faz à psicanálise são, no meu entender, correctas e válidas. O que não acho correcto é a sua forma de criticar, na medida em que ela se rege por uma ilusão de crítica À psicanálise, como se ela existisse, como se a sua crítica perpassasse as diferentes perspectivas da psicanálise por igual, como se ambas tivessem uma coluna vertebral partilhada, sem ver que os seus núcleos são núcleos descentrados e excêntricos uns em relação aos outros, são incomensuráveis e comportam diferenças insanáveis. Por outras palavras, ela subsume a heterogeneidade das várias posições singulares e mesmo dispares e, dessa forma, opera como Procrustes, decepando o que dessa heterogeneidade existe, para que se possa a afirmar a substância única, "A" Psicanálise, como um conceito, uma identidade, manipulada como bem se entender. Um alvo pronto a abater.

Sabemos bem, inclusive a partir de Deleuze, como o modus operandi dessas generalizações e reificações está ao serviço do modus da lógica identitária (que ele incansavelmente criticou) e ao serviço dos fetiches. Quando falamos da psicanálise, falamos do quê em concreto, é o que se poderia perguntar à Alice. Quando ela critica a psicanálise, o que é que motiva esta sua "forma" crítica, onde tudo é o Mesmo, tudo igual, tudo leva por tabela, sem excepções e sem diferença. E como não quero passar por alguém que acusa fortuitamente sem apresentar as devidas provas, podemos confirmar isso mesmo no seu último post onde ela alega a existência de "tantos especialistas, psicólogos, freudianos" entre outros mal-intencionados na contribuição para a afirmação do eugenismo no nazismo. Saberá ela que os textos de Freud, tal como de muitos outros judeus, foram queimados e que a psicanálise foi uma prática perseguida pelo nazismo? Não percebo a base factual desta afirmação, não sei o que ela entende por freudianos e não apresenta uma qualquer referência dos contributos dos tantos freudianos à teleologia nazista. Esta é, na verdade, uma acusação original. Coitados dos freudianos, acusados de tantas coisas, só faltaria serem acusados de andarem a dançar valsas com os nazistas. Aonde pretenderia chegar ela com a introdução deste termo, freudianos, e quase de uma forma dissimulada aos olhares mais desatentos, num texto (validamente) crítico à inovações da psicologia e às suas relações com o eugenismo?

Mas o seu erro, na minha opinião, não é meramente o da fetichização crítica da psicanálise, vai mais longe (como é o caso desta suposta alegação). Esse erro é apenas o ponto de partida para se legitimar que se diga todo o tipo de disparates (como veremos a seguir). Digo disparates, porque não sei que com que outro nome epitetar tais construções de bricolage.

Sabemos o quanto Deleuze denunciou as miragens do princípio de identidade dos conceitos e das representações. Esse mesmo Deleuze que, no estilo do D. Quixote, também fez da psicanálise um moínho de vento, metendo os pés pelas mãos no que se refere à sua crítica teórica, e, pensando estar a dizer umas abstrações inteligentes, nada mais disse do que umas tolices intelectuais. Não é preciso sermos génios, mas sim sabermos ser críticos, para o constatarmos nalgumas das suas principais obras, como é o caso de Diferença e Repetição (ver, por exemplo, qual a sua interpretação sobre qual é a intuição fundamental de Freud no Para Além do Princípio do Prazer. É pena alguém da excelência de Deleuze extrair tão pouco e tão ao lado) ou do Anti-Édipo. A esse propósito, podemos ver a citação da Alice do Anti-Édipo: http://alisenao.blogspot.com/2007/11/anti-dipo-04-abjecta-dependncia.html -, citação que oportunamente comentei, sem qualquer resposta esclarecedora da sua parte. Quem conhecer minimamente tanto a teoria freudiana como a lacaniana não deixará de esboçar um sorriso a afirmações como "a PSICANÁLISE castra o inconsciente, injecta a castração no inconsciente". Como legitimar nos textos de Freud este tipo de asserções? Será que a Alice saberá dar alguma lógica a esta frase de Deleuze, principalmente a partir de um qualquer texto de Freud (já para não falar no Lacan, onde encontramos as coisas de uma forma mais clara do que a água mais cristalina)? Bom, como diz Wittgenstein, nem tudo o que é lógico é verdeiro, e se para Deleuze esta afirmação tinha alguma lógica, só poderia ter lógica imanente ao seu próprio moínho de vento.

Tão pouco consigo perceber onde a Alice quer chegar no seu post "Imagina-se o inconsciente" - http://alisenao.blogspot.com/2006/09/imagina-se-o-inconsciente.html - com a asserção de que o objectivo da psicanálise é a cura do inconsciente. Está certo que estamos numa democracia e que cada um pode dizer aquilo que quiser. Mas aí reside o seu segredo. Noutros termos, a democracia implica menos dizer-se tudo o que se quer de uma forma displicente e "a Lagardere", do que o ter responsabilidade naquilo que se diz. Na verdade, gostaria que a Alice pudesse explanar um pouco mais as suas ideias sobre esta tese que avançou. Talvez estejamos face a uma verdadeira revolução teórica da psicanálise e isto sem darmos conta. Com certeza que oportunamente ela nos explicará de que forma é que se dá esta cura do inconsciente. Será pela castração do inconsciente, que avança o "clínico" Deleuze?

Enquanto a Alice não nos revela o que está por detrás de tal tese, tenho que confessar que se ela acha que tal formulação é uma inovação, eu a acho uma brincadeira às psicanálises e aos incendiários sem ponta por onde pegar. É como andar a espalhar boatos e esperar que deles resulte alguma coisa. Mas o que ela procura com essa postura, somente poderá ser ela a dizê-lo. E espero que o diga.

Escrevi estas críticas, porque espero que a Alice saiba poder reconhecer que a humanidade é fertil em desenvolver técnicas que poderão ter utilizações não éticas. As antropotécnicas são uma componente intrínseca ao nosso próprio modo de existir, como afirma Sloterdijk. Para o bem e para o mal. A psicanálise é uma delas, e, não nos iludamos, de que todas as suas perspectivas têm pontos criticáveis (existe alguma bibliografia minimamente credível e honesta sobre o assunto). Tal como a educação. Tal como a psicologia (como a Alice demonstrou, e muito bem, no post que motivou a minha resposta). Tal como a filosofia. Quem poderá aprovar a interpretação de Nietzsche pelos filosofos nazistas, a sociedade perfeita imaginada por Platão, ou a adesão de Heidegger, o defensor da clareira do ser, ao Partido Nacional Socialista? Sem esquecemos a arte e a existência de artistas de que nem sei o que o que lhes chamar. Com certeza que tudo menos artistas.

Espero, deste modo, que a Alice possa inflectir reflectivamente sobre a sua equivocada posição contra A psicanálise, até para poder constatar e ver que ela (A psicanálise) não existe: é um ilusionismo mal-intencionado, que não é tudo igual, tudo o Mesmo e, dessa forma, não operar com uma lógica que está muito afastada da realidade da verdade que é a diversidade de várias perspectivas psicanalíticas tão distantes como a água e o fogo. Continuar a insistir nessa postura crítica é, quanto a mim, optar pela via mais fácil e a que permite falar sem o fazer a partir de um conhecimento de causa. Se se quer criticar, o que é legítimo, ao menos que se proceda por uma crítica relativamente esclarecida sobre aquilo que se critica, caso contrário somente instalados confortavelmente no plano daquilo que Heidegger designou de Gerede, iludidos de que temos legitimidade para dizer todo o tipo de disparates. Nesse caso, seria preferível levar a sério Wittgenstein e ficarmos em silêncio.